Perspectiva
A perspectiva foi desenvolvida na Renascença. Essa descoberta representou um divisor de águas no que diz respeito à representação gráfica. Naquele momento estabelecia-se uma nova forma de pensar o espaço, uma forma mensurável, que seguia normas matemáticas. Essa nova técnica foi e é amplamente utilizada não só na Arquitetura e Engenharias, como também nas Artes Plásticas (pintura, escultura, cenografia, etc). Borda (2001) destaca a sua importância: "A perspectiva foi considerada como o primeiro método projetivo sistematizado e por isso uma primeira linguagem técnica da Arquitetura" (BORDA, 2001 citado por PANISSON, 2007, p.63)

Heydenreich (1998) afirma que Brunelleschi, homem de formação multidisciplinar (ourives, com formação matemática e mecânica), criou uma maneira própria de compatibilizar o conhecimento teórico e científico, com estudos práticos e desenvolveu sua notável criatividade como arquiteto na Renascença. Ele foi o inventor da ciência da construção em perspectiva. Esse fato, além de representar um novo sentido de proporções e harmonias arquitetônicas, possibilitou novas formas estruturais e técnicas de construção.
Fillipo Brunelleschi nasceu em Florença, em 1377. Desde muito jovem apresentava uma grande capacidade inventiva e de representação. Trabalhou em diversos campos, desde confecção de relógios e pedras preciosas até esculturas, o que lhe proporcionou o contato com diferentes tipos de materiais e técnicas, ampliando seus conhecimentos em torno da escala humana, da representação expressiva, do comportamento de diversos materiais, o que contribuiu para sua formação e posteriormente, sua atuação de destaque como arquiteto e construtor no cenário do Renascimento Italiano (MIGUEL, 2003).
Brunelleschi projetou e comandou a execução da cúpula da catedral de Santa Maria del Fiore, uma obra de grande complexidade para a época. Segundo Miguel (2003), em um primeiro momento, ao ser consultado sobre o assunto, o arquiteto aconselhou que convidassem os melhores artesãos para uma reunião a fim de discutirem a melhor solução. Diante das propostas que não atendiam os objetivos, Brunelleschi apresentou a sua: a construção de uma dupla cúpula, que absorveria as próprias tensões. Fez o planejamento da execução prevendo uma grua para o transporte de materiais, um andaime projetado por ele assim como máquinas, dispensando o uso do cimbre[1]. O fato lhe tornou famoso e ele passou a ser visto como um grande construtor com importantes qualidades técnicas. Panisson (2007) analisa suas contribuições:
"Brunelleschi foi o arquiteto precursor na associação da Arquitetura com a ordem visual. A cúpula da Catedral de Florença (Santa Maria del Fiore) representa a construção de um signo forte na história. Resultado da sua invenção da perspectiva, que envolveu o espaço com a concepção matemática. Inaugura-se com Brunelleschi a concepção matemática do espaço que envolve o olhar moderno"(PANISSON, 2007, p. 65).

Catedral Santa Maria del Fiore, Florença, Itália. Fonte: disponível em www.britannica.com.

Detalhe da Cúpula da Catedral de Florença. Fonte: https://pelandintecno.blogspot.com.br/2015/01/reinventando-la-arquitectura-la-mole-de.html
Uma primeira definição de perspectiva feita por Brunelleschi foi a seguinte: "A perspectiva consiste em dar com exatidão e racionalidade a diminuição e o aumento das coisas, que resulta para o olho humano o afastamento ou a proximidade das casas, montanhas, paisagens de todas as espécies" (MIGUEL, 2003, p.3). Segundo Argan (2013) perspectiva é uma palavra de origem latina e significa 'ver através de". Heydenreich (1998) descreve a descoberta de Brunelleschi:
"Inventou um método de construção geométrica pelo qual é possível produzir uma minuciosa representação de um sistema de objetos tal como o olho humano o percebe, e determinar as relações proporcionais dos objetos individuais percebidos por meio das leis matemáticas que estão contidas nessa perspectiva" (HEYDENREICH, 1998, p. 14).
Uma das características que faz da perspectiva uma técnica diferenciada é que ela proporciona a possibilidade de representar um objeto que possui três dimensões (largura, altura e profundidade) em uma superfície de duas dimensões (largura e altura).
A perspectiva linear possui várias outras denominações: exata, artificialis, e mais recentemente cônica. De acordo com Ching (2011), a perspectiva cônica é uma técnica de representação de volumes e relações espaciais tridimensionais em uma superfície bidimensional por intermédio de linhas que convergem de acordo com que recuam na profundidade do desenho. Possuem a propriedade de oferecer visões sensoriais da realidade óptica e se aproximam da forma que o observador visualiza objetos e espaço.
A técnica da perspectiva foi um importante instrumento para os arquitetos renascentistas. Eles desejavam romper com a arquitetura gótica e retomar os princípios de simetria, proporcionalidade, ritmo e ordem, regularidade e harmonia da antiguidade clássica. Passam então estudar a fundo a arquitetura clássica e resgatam a tríade vitruviana de utilitas, firmitas, venustas (função, solidez e beleza), a composição da forma baseada na geometria e na seção áurea (MIGUEL, 2003).
Segundo Miguel (2003), na busca pelo domínio da linguagem clássica, Brunelleschi e Donatello passaram a investigar as ordens arquitetônicas, suas medidas e composições. Realizavam um trabalho minucioso no qual empregavam grande parte do tempo medindo e desenhando as ruínas romanas. Estudaram a fundo o Coliseu e o Panteon. À parte, faziam pequenos trabalhos para sobreviverem e, por realizarem atividades em ruínas e andarem com roupas sujas e rasgadas, os romanos, que não os compreendiam, os apelidaram de "caçadores de tesouros".

Coliseu, Roma, Itália. Crédito da imagem: Janaína Carneiro Marques, 2018.

Panteon, Roma, Itália. Crédito da imagem: Janaína Carneiro Marques, 2018.
Brunelleschi demonstrou seu método de perspectiva utilizando uma tabuleta quadrada de meio braccio[1] (braço), na qual fez a pintura em perspectiva do Batistério de San Giovanni . Posicionou-se na porta da catedral de Florença, perfurou a tabuleta e então a virou, de forma que posicionasse o olho do lado contrário à pintura. Com a outra mão segurou um espelho e o posicionou entre a tabuleta e o Batistério. Quando observava o espelho, via o desenho se encaixando na paisagem, as linhas da perspectiva coincidiam com as linhas da obra arquitetônica.

Batistério, Florença, Itália. Crédito da imagem: Janaína Carneiro Marques, 2018.

Catedral Santa Maria del Fiore e Batistério, Florença, Itália. Fonte:https://en.wikipedia.org/wiki/Florence_Baptistery.

Vista superior da posição de Brunelleschi ao demonstrar seu método de perspectiva Fonte:https://sites.google.com/site/unanuovaconcezionedellospazio/home/brunelleschi. Adaptação: GPDTEC.

Demonstração do método de perspectiva elaborado por Brunelleschi.
Fonte: Disponível em https://www.aparences.net/periodes/le-quattrocento/les-architectes-du-quattrocento-a-florence/.
De acordo com Katinsky (2001) a perspectiva exata foi descrita pela primeira vez pelo arquiteto e erudito Leon Batista Alberti. Alberti nasceu em Gênova, em 1404. Pertencia a uma família abastada, recebeu excelente formação. Graduou-se em Direito Canônico, porém atuava em várias áreas como Filosofia, Arte, Arquitetura, Matemática. Tinha grande interesse pela matemática, e defendia a racionalidade: "Facere quidem aliquid certa cum ratione artist est" (Arte é qualquer coisa a partir da razão) (PACHECO, 2004).
Assim como Brunelleschi, Donatello, Giotto e Masaccio, Alberti fez parte de um movimento do Renascimento Italiano denominado "O Quatrocentos". Sua participação foi importante, pois sempre se preocupava em teorizar a prática, buscar explicações científicas e racionais para os métodos. Dessa forma, escreveu três tratados: o "De Pictura" (1436), direcionado a pintores, no qual descreve a perspectiva exata desenvolvida por Brunelleschi e acrescenta nova técnica que ficou conhecida como costruzione legittima, baseada no pavimento quadriculado em perspectiva; o "De Re Aedificatoria" (1452), tratado de Arquitetura baseado nos princípios vitruvianos da Antiguidade e um tratado sobre esculturas (1464) (HEYDENREICH,1998). "Alberti elaborou teorias importantes sobre essas artes que, combinando princípios estéticos com regras práticas, forneceram à criação artística uma doutrina" (HEYDENREICH,1998, p.34). Logo, deixou registrado o legado dos arquitetos, pintores e escultores renascentistas.
No tratado Da Pintura Alberti apresenta as definições de ponto, linha, superfícies e ângulos, conforme estudos de Euclides expostos em "Os Elementos" (CAMELO, 2009). Explica que sua intenção é "falar da pintura com base na matemática e expô-la a partir dos princípios da natureza" (ALBERTI, 1999, p. 75). Trata da técnica que desenvolveu baseado nas descobertas de Brunelleschi e explica o método que elaborou conceituando pirâmide visual:
"A pirâmide é a figura de um corpo no qual todas as linhas retas que partem da base terminam em um único ponto. A base dessa pirâmide é uma superfície que se vê. Os lados dessa pirâmide são os raios que chamei extrínsecos. O Vértice, isto é, a ponta da pirâmide, está dentro do olho, onde está o ângulo das quantidades" (ALBERTI, 1999, p.82).

Pirâmide Visual. Alberti, 1999. (Reedição)
Dessa forma, a geometrização da perspectiva ocorre considerando-a uma superfície plana de interseção dessa pirâmide e o quadro. Alberti solicita que se leve em consideração a proporcionalidade dos triângulos da pirâmide (CAMELO, 2009). E prossegue a descrição da 'costruzione legittima':
"Inicialmente, onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual reputo ser uma janela aberta por onde possa mirar o que aí será pintado, e aí determino de que tamanho me agrada que sejam os homens da pintura "(ALBERTI, 1999, p. 94).

Método de construção da perspectiva descrito na obra De Pictura, Leon Battista Alberti. Fonte:https://letteraturaartistica.blogspot.com.br/2013/11/english-version-rocco-sinisgalli-il.html
Assim como Brunelleschi, Alberti utiliza o corpo humano e suas proporções como referência a unidade de medida é o braccio (braço):
"Divido o comprimento desse homem em três partes, sendo para mim cada uma das partes proporcional à medida que se chama braço, porque medindo-se um homem comum, vê-se que ele tem quase a medida de três braços. E de acordo com essa medida de braço, divido a linha de base do quadrângulo em tantas partes quanto deva ela comportar. [...] Depois, dentro desse quadrângulo, fixo onde me parece melhor, um ponto que ocupará o lugar que o raio cêntrico vai atingir e, por isso, eu o chamo de ponto cêntrico" (ALBERTI, 1999, p. 94-95).

Método costruzzione legittima.
Fonte: Disponível em http: https://www.researchgate.net/figure/276366857_fig2_Figure-3-Alberti's-linear-perspective-model-Assier-2014.
Podemos iniciar o método costruzione legittima com a determinação do ponto P, o ponto cêntrico descrito por Alberti. Dividimos a base e ligamos, por meio de linhas, as divisões ao ponto P. A medida designada por l corresponde à distância do ponto P ao limite do quadro (ou quadrângulo).

Parte inicial do método costruzione legittima.
Fonte: https://descrittiva4.blogspot.com.br/2008_08_01_archive.html.
Em seguida posicionamos o observador de perfil a uma distância d. A altura do olho do observador (ponto de vista V), coincidirá com altura da linha do horizonte (h), que abriga o ponto cêntrico.

Método costruzione legittima.
Fonte: https://descrittiva4.blogspot.com.br/2008_08_01_archive.html.
Então desenhamos linhas que saem do olho do
observador (V) e são ligadas às divisões realizadas na linha de base do
quadrado. Posteriormente, dos pontos de interseção das linhas que partem do
olho do observador com o quadro, traçamos as linhas transversais.

Método costruzzione legittima.
Fonte: https://descrittiva4.blogspot.com.br/2008_08_01_archive.html.
A perspectiva será traçada tendo como base a quadrícula resultante, que guiará o desenhista em relação às proporções.
Para Ching (2011), a grande vantagem da perspectiva cônica é propiciar uma visão de vivência do espaço. Além disso, oferece também um método de posicionamento correto de objetos tridimensionais e conduz à percepção de como os objetos diminuem de tamanho à medida que se afastam do observador.
Posto que a posição relativa desses "raios
visuais" determina a posição aparente dos pontos em questão no quadro, basta
traçar a planta e a elevação do sistema inteiro para determinar a figura que
aparece sobre a superfície da interseção. A planta fornece os valores da
largura, a elevação os valores da altura, posteriormente reunimos esses valores
sobre um terceiro desenho para obter a projeção perspéctica procurada (ARGAN, 2013).
Ao analisar a importância da perspectiva criada no Renascimento na concepção de projeto de Arquitetura, Argan (2013) afirma que a perspectiva já não é considerada a lei de sensação ótica, mas a lei construtiva do próprio espaço. Essa técnica passou a ser utilizada nos estudos de proporções, de relação entre as partes e o todo, se tornou ferramenta fundamental na concepção arquitetônica.
"[...] os métodos de expressão gráfica utilizados nos traçados de perspectivas são, não somente um modo de ver ou representar o espaço, mas também uma construção intelectual, uma teoria" (GRIZ, 2007, p. 2).
Os avanços dos estudos de Brunelleschi e Alberti foram muito significativos para o estabelecimento da perspectiva, enquanto conhecimento científico. Destarte, Katinsky (2002) dintingue suas contribuições:
"Nas descobertas de perspectiva por Brunelleschi os fundamentos recaíam em um método ótico-gráfico, estudado com o apoio de tabuletas, uma primeira que demonstrava a validade das leis da perspectiva exata e uma segunda que demonstrava a universalidade dessas leis, aplicando-as na representação do Palácio Vechio, assimétrico e com uma das fachadas com torturas. Depois de Brunelleschi, utilizando um quadro transparente, Alberti distingue seu método de perspectiva nitidamente dos que a usam empiricamente e trata então seu livro 'Da Pictura' não como mera condição de registro do modo de desenhar a perspectiva exata de Brunelleschi ou outros pintores da época" (KATISNKY, 2002 citado por PANISSON, 2007, p.64)
A grande contribuição dos renascentistas foi que, mais que um método de representação, a perspectiva se configura em método de criação do arquiteto e demais profissionais da área, utilizado desde os primeiros croquis até o projeto executivo. Por meio dessa técnica, surgiram novas ferramentas, novos métodos construtivos. Desde que foi criada, deu origem a algumas variações e o profissional pode utilizar a que melhor lhe atende, ele escolhe de acordo com o que deseja destacar. (ALBERNAZ, 1998).
Glossário:
[1]
Cimbre: Armação de madeira que serve de molde e
suporte aos arcos e abóbadas e são retirados após o término da obra (MIGUEL,
2003).
[2] Braccio: unidade utilizada como referência no Renascimento, mede 58 cm.
Observação: Esse texto é parte da dissertação cuja a referência é MARQUES, Janaina Carneiro. O Ensino do Desenho Técnico mediado pela História da Arquitetura, Matemática e Computação Gráfica. Programa de Pós Graduação em Educação em Ciências e Matemática. Vitória: Ifes, 2016. Disponível em URI: https://repositorio.ifes.edu.br/handle/123456789/132 (Favor citar a fonte).
Essa parte do trabalho é integrante de artigo apresentado e publicado no GRAPHICA 2019. XIII International Conference on Graphics Engineering for Arts and Design - de 24 a 27 de setembro - Rio de Janeiro - Brasil. https://graphica2019.org/anais.php
Bibliografia:
ALBERNAZ, Maria Paula; LIMA, Cecilia Modesto. Dicionário ilustrado de arquitetura. Verbetes de j a z. vol 2. São Paulo: Proeditores, 1998.
ALBERTI, L.A. Da pintura. Campinas: Unicamp.livro1, 1999.
ARGAN, Giulio C. História da arte italiana: De Giotto a Leonardo. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
CAMELO, Midori Hijioca. O Espelho e a janela - as investigações ópticas de Fillipo Brunelleschi (1377-1446) e Leon Battista Alberti (1404-1472) para a "construzione legittima". Tese. 2009. (Doutorado em História da Ciência). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. PUC-SP: São Paulo, 2009.
CHING, Francis D. K. Representação gráfica em arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2011.
GRIZ, Cristiana. Desenho de perspectiva e história da arquitetura: em busca de uma interdisciplinaridade. Curitiba. Graphica, 2007. https://www.exatas.ufpr.br/portal/docs_degraf/artigos_graphica/A%20TEORIA%20DA%20PERSPECTIVA%20FUNDAMENTADA%20PELA%20GEOMETRIA%20PROJETIV.pdf
HEYDENREICH, Ludwig H. Arquitetura na Itália 1400-1500. Tradução de Maria Thereza Rezende. São Paulo: Cosac e Naify Edições, 1998.
KATINSKY, JUlio Roberto. A perspectiva exata e o desenvolvimento da geometria ótica. Revista Brasileira de História da matemática. Vol 1, n.2, 2001.
KATINSKY, J.R. Renascença: estudos periféricos.
S.Paulo: FAU-USP, 2002.
MIGUEL, Jorge Marão Carnielo. Brunelleschi: o caçador de tesouros. Vitruvius, 2003. Disponível em https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.040/ 651.
PANISSON, Eliane. Gaspar Monge e a sistematização da representação gráfica na arquitetura. 2007. Tese (doutorado em arquitetura) - Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, UFRGS: Porto Alegre, 2007.